Voces por el cambio

Enfrentados relações de dominação e construindo uma cultura de cuidado

Por: Luciana Pinto, Coordinadora Nacional TdHSuisse Brasil 

 

A construção de uma cultura de proteção e cuidado para crianças, adolescentes e jovens, especialmente meninas e mulheres é um desafio permanente em uma sociedade marcada pela herança patriarcal, que traz no machismo ameaças a direitos, inclusive à proteção e à vida. Uma expressão forte do patriarcado e das culturas de opressão está na cultura do estupro: a banalização e normalização dos crimes de violência sexual pela sociedade, que estimula tais práticas quando objetifica meninas e mulheres nos meios de comunicação, culpabiliza vítimas, naturaliza assédios que elas sofrem nas ruas, ou mesmo incentiva meninos a serem os “pegadores” e as meninas a aceitarem serem tocadas à força por seus colegas.

No Brasil em 2018 foram 66 mil vítimas de estupro, com 53,8% sendo meninas até 13 anos[1]. Neste cenário perguntamos: como lidar com práticas de opressão social a que estão submetidas meninas e mulheres e avançar na construção de uma cultura de cuidado em que elas possam ser agentes de mudanças de suas realidades, em relação a estes temas que são dois lados da mesma moeda? Não existe receita, mas existe aprendizado e caminhos objetivos que estimulam a ressignificar violências e prevenir e/ou minimizar sofrimentos, consolidando o lugar de equidade ao qual meninas e mulheres têm direito na sociedade.

Um ponto de partida é a afirmação de identidades. A cada vez que alguém se apresenta de acordo a suas características, revela sobre si identidades: raça e etnia, gênero, geração, território, e as vezes também aspectos coletivos: pertencimento a grupos sociais, e ainda valores como feminismo, antirracismo, anti-homofobia etc. Isso chama atenção para o que Djamila Ribeiro[2] denominou como: lugares de fala[3]. Nesse sentido, Kel, Silva, jovem, mulher, negra, nordestina do semiárido, estudante e poetisa, participante do Conselho Nacional de Jovens de TdH Suisse, afirma: “só me vi como sujeito de direitos quando me vi como povo, e foi quando me vi como povo que entendi que preciso fazer parte destas lutas, que entendi quais lugares de poder eu preciso ocupar”[4].

É, porém, necessário entender que as formas de afirmação se dão por caminhos diferentes. Através da estética, do pensamento, da linguagem, dos ambientes de participação escolhidos, e essas experiências se dão em tempos e com apoios diferentes da vida.  Compreender isso nos permite evitar julgamentos e expressar respeito às diversidades, contribuindo para uma cultura de cuidados individual e coletivamente. E é na diversidade que a gente se põe à prova, se testa, se conhece, se estranha, se transforma e transforma o que está a nossa volta.

[1] de acordo com o 13ª Anuário Brasileiro de Segurança Pública

[2] Filósofa, feminista negra, escritora, acadêmica brasileira, pesquisadora da Universidade de São Paulo.

[3] Para Djamila Ribeiro lugar de fala é a consciência do papel do indivíduo nas lutas, criando uma lucidez de quando você é o protagonista ou coadjuvante no cenário de discussão. Não há silenciamento de vozes, na verdade é justamente nesse ponto que queremos avançar. Traz uma liberdade para cada grupo se reconhecer e entender em qual espaço se encontra conforme o processo de organização e falar com propriedade a partir dele.  (RIBEIRO, Djamila. “O que é Lugar de Fala”. Belo Horizonte: Letramento, 2017. 112 p.p. (Feminismos Plurais)

[4] Fala retirada da participação de Keu Silva no vídeo-live: Pega a Visão – Diálogos Intergeracionais: conjuntura política e o lugar das juventudes. Maio/2020. www.youtube.com/TdHSuissenoBrasil 

 

De outro lado, muitas meninas perguntam o que exemplifica relações abusivas. É importante saber tais relações acontecem entre casais de quaisquer orientações sexuais, mas também entre pais e filhas, mães e filhos, adultos cuidadores, nas escolas e outros grupos de convivência. Ou seja: em quaisquer relações em que lugares de poder sejam utilizados para legitimar violências psicológicas, sexuais ou físicas. As características de uma relação abusiva são em si a própria violência, trilhando caminhos que podem chegar até a estágios irreversíveis como feminicídio ou o infanticídio. Assim, não naturalize ciúmes; observe se há invasão de privacidade (olhar celular, vigiar redes sociais, solicitar senhas); negação ou proibição da vida social, atitudes que façam você se sentir culpada, inadequada, desvalorizada, seja no seu ciclo de relações, seja no de quem está a sua volta.

Outro ponto de atenção é que a história de sofrimento de uma menina ou mulher que passou por uma situação de violência só pode ser publicizada por ela, por vontade própria, e se para ela isso fizer parte da ressignificação dos traumas que deixados. Ninguém tem o direito de expor quem quer que seja. E nesta mesma direção, é preciso atentar para o fato de que a condição de “vítima” se dá em consequência de um fato, mas essa circunstância não se incorpora a sua identidade. Por exemplo, Maria, continua sendo estudante, moradora daquela comunidade, negra, feminista, quilombola. Ela não passa automaticamente a ser a menina que sofreu violência sexual.

Porém, a criação de uma cultura de cuidado é responsabilidade da sociedade em geral. E aí outra pergunta que chega com frequência é: e como os meninos podem ser aliados no combate à cultura do estupro? O machismo é danoso a todos, mas para meninos os prejuízos são menos visíveis porque alimenta uma fantasia de poder e virilidade, e se aprende que negar práticas machistas pode significar perder este “poder”, sobretudo diante do feminino. Então, para os meninos isso também exige coragem. Coragem para reprimir a piada machista que desqualifica o feminino na roda de amigos, para valorizar as conquistas das meninas e mulheres em qualquer campo da vida,  para não cercear sua fala nos espaços de convivência social, para não subestimar a sua capacidade na resolução de problemas, entre tantas outras atitudes que exigem consciência e vigilância, mas que também revelam amadurecimento quando se consegue alcançar.

Mas as relações vão se expandindo. Quem nunca conheceu uma pessoa que passou por violência por ser menina ou mulher? Tomar para si a responsabilidade pelo apoio é algo importante. Faz parte de práticas de cuidado o acolhimento, o encaminhamento a espaços de atenção psicossocial, o estar próximo ou próxima na hora da denúncia. Nesse sentido, conhecer os canais formais é de extrema importância. Você sabe onde fica a delegacia da mulher em sua cidade? Onde há um centro de atenção psicossocial? Conhece uma ONG que pode te ajudar? Sabe quem mais pode fazer parte dessa rede de apoio entre os amigos ou a família? Não silenciar, “meter a colher” é sim, nosso papel. Informe-se!

Toda a sociedade, portanto, nós também, somos atravessados por múltiplas experiências de violência de várias ordens. Às vezes sendo afetados por ela, as vezes sendo responsáveis por pratica-la. Assumir isso é importante, porque é quando assumimos que nos responsabilizamos por mudar de atitude. A mudança ocorre, quando, ao invés de nos acomodarmos com o fato de “sermos atravessados” pelo preconceito e pela violência, nos permitamos “atravessar”, no sentido de transpor, sobrepor, a sermos pontes para quem vem junto conosco e depois de nós.

 

Terre des Hommes en Brasil está presente en el semiárido de Bahía, y cuenta con 4 organizaciones socias, llegando a 7.718 niñas, niños, adolescentes y jóvenes directamente. Artícula su trabajo con la Embajada Suiza, integra la Alianza Joining Forces por los derechos de la niñez y con la plataforma de ONGs suizas activas en Brasil, además mantiene alianzas con la Universidad Católica del Salvador, la Universidad Federal de Reconcavo Baiano, el Ministerio Público del Estado de Bahía y la Articulación y Diálogo de Organizaciones de la Sociedad Civil (PAD). A través de sus copartes, fortalece e interactúa con la Articulación Nacional de Agroecología, Articulación del Semiárido Brasileño, Red Educativa del Semiárido Brasileño y con la Red de Escuelas Familia Agrícola de Bahía - Refaisa.

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